A cada manhã, o argentino habitual busca um jornal, acende um cigarro e faz uma ligação com seu telefone fixo. Contudo, essa visão arcaica escandaliza os economistas. Por que? Porque estatísticas do governo em Buenos Aires mantêm esses itens obsoletos como pilares do índice de preços ao consumidor.
E a pressão para o presidente Javier Milei reformular esse índice, após uma estagnação de duas décadas, só aumenta. O que deveria ser uma revisão de itens relevantes, como iPhones e assinaturas da Netflix, é travado por uma burocracia que reluta em deixar a velha guarda para trás.
Economistas preveem que um índice atualizado revelará uma inflação muito mais alarmante do que os atuais 2,5% divulgados mensalmente. Estudos contínuos sugerem que diversas regiões, como Buenos Aires, apresentam índices mais altos do que os dados oficiais. Até o diretor do INDEC, órgão responsável por tais estatísticas, admitiu a necessidade de mudanças. Contudo, mesmo após seis meses dessa afirmação, nada foi feito.
Para Milei e sua equipe econômica, uma atualização do índice poderia ameaçar sua retórica de sucesso contra a inflação, principalmente com as eleições de meio de mandato se aproximando, marcadas para outubro. O que está no papel é a queda impressionante da inflação anual — de espantosos 276,2% para 66,9% — segundo os dados do INDEC.
Mas aqui está o ponto: qualquer movimento que possa afetar sua aparente vitória contra a inflação, que solidifica sua aprovação popular, faz Milei hesitar. Um novo índice implicaria em aumentos nos títulos atrelados à inflação, uma fonte crucial de financiamento para o governo.
Os argentinos, cansados de décadas de inflação incontrolável, tornam-se naturalmente céticos em relação aos números oficiais. Um escândalo de manipulação de dados do INDEC há uma década ainda ressoa, e mesmo com a desaceleração recente, muitos cidadãos acreditam que os preços estão subindo mais rapidamente do que o governo afirma. “A inflação pode estar diminuindo, mas os preços estão em ascensão,” aponta Angel Santos, um supervisor de 66 anos em Buenos Aires.
Santos sente a pressão no bolso, com tudo, desde transporte a alimentos, em constante aumento. “Alguns preços se estabilizaram, mas o que eu realmente preciso continua aumentando. Já existem medicamentos que não consigo mais comprar,” afirma.
Uma pesquisa da Atlas Intel reflete esse dilema: cerca de 42% dos entrevistados mencionam a inflação como o maior problema da Argentina, mostrando que a crise do custo de vida está longe de ser resolvida.
Os sindicatos, que representam tanto o setor público quanto o privado, argumentam que a “real” inflação seria de 10 a 22 pontos percentuais superior ao que os números oficiais indicam.
Em setembro, Marco Lavagna, o diretor do INDEC, anunciou que a cesta de produtos seria revisada em poucos meses. “Estamos em fase de testes finais, mas precisamos ser cautelosos sobre quando implementaremos as mudanças,” disse Lavagna à rádio Radio 10. “No entanto, não teremos grandes mudanças.”
A Central dos Trabalhadores Argentinos (CTA) adotou uma abordagem diferente, calculando que a inflação deveria ser 10 pontos percentuais acima da oficial, ao utilizar dados de preços atualizados com base na pesquisa de 2017 do INDEC.
Um fator crítico é a sub-representação dos serviços essenciais na cesta de produtos. Enquanto alimentos e utilidades têm um peso predominante no índice, serviços como saúde, educação e assinaturas digitais são negligenciados, não refletindo a verdadeira realidade do consumo.
“Desde 2004, houve uma melhoria no poder de compra que levou os argentinos a consumir mais serviços em vez de alimentos,” diz Mariana Gonzalez, economista da CTA.
Os custos de aluguel, utilidades e transporte superaram o aumento dos preços de alimentos nos primeiros 15 meses do governo Milei, mas essa combinação tem um peso menor que os alimentos no índice atual.
Embora os preços de produtos obsoletos como tabaco e jornais impressos tenham acompanhado a inflação geral de 69% em fevereiro, os aluguéis dispararam 240% e os serviços de internet quase 100% em comparação ao ano anterior, segundo o INDEC.
A proposta de Lavagna para uma nova pesquisa de despesas domiciliares envolve um ajuste na metodologia de medição da inflação. O intuito é alinhar o Brasil com práticas internacionais, com recomendações do FMI e do Banco Mundial para atender a esses padrões a cada cinco anos.
O chefe do INDEC prometeu que essa nova abordagem incluiria cerca de 500.000 preços, em vez de apenas 320.000, e 24.000 infocompatíveis. Lavagna também cogitou mudar a estrutura da amostra e o peso de bens e serviços, visando melhor representar os hábitos de consumo atuais.
Contudo, a implementação desse plano nunca ocorreu. Analistas alertam que, sem uma atualização significativa na cesta de produtos, a realidade da inflação na Argentina permanecerá distorcida, desassociada das necessidades reais da população.

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